Percepção humana
Esta seção traz as pesquisas e relatórios que abordam a percepção do usuário, ou seja, do morador, em relação à HIS. As pesquisas que trazem este tipo de informações utilizam metodologias de avaliações de pós-ocupação (APO), com base em questionários, entrevistas e metodologias para identificar a percepção de valor e satisfação dos moradores em relação ao local em que residem.
Este capítulo trata da percepção de valor, relação entre benefícios e sacrifícios na aquisição de um bem; a satisfação do usuário, e a relação que estes fatores têm na permanência do morador na HIS.
Satisfação do usuário e Percepção de valor
Segundo Huang e Du (2015) para “medir” a satisfação do usuário em relação a sua moradia é necessário analisar: as características da residência; as características da vizinhança (limpeza, segurança, áreas verdes, barulho); infraestrutura pública (transporte, escolas, posto de saúde); contexto social (comunidade) e as características dos moradores (idade, gênero, número de moradores). O relatório do IPEA (2014) considerou três dimensões da percepção humana sobre o habitar doméstico: a casa, a moradia e a habitação. Entende-se a dimensão da casa como as questões relacionadas à edificação em si; a dimensão da moradia a partir dos elementos que permitem o habitar adequado, como o conforto, por exemplo; e a dimensão da habitação em relação da casa e o seu entorno imediato, ou seja, a vizinhança e inserção urbana. Este estudo teve abrangência nacional com aplicação de questionário em uma amostra de 6.241 unidades habitacionais. No entanto, a análise dos resultados sugere que os moradores não veem com clareza a separação entre estas três dimensões conceituais. Este resultado pode ser uma indicação da necessidade de se englobar todos os elementos associados à moradia (edificação e inserção urbana) para avaliar de forma coerente a satisfação do usuário em relação à HIS (BRASIL, 2014).
Considerando os fatores de maior importância para a satisfação geral do morador, Huang e Du (2015), em pesquisa realizada na China, identificaram três fatores que explicam 93,3% da variância, sendo eles: as características da vizinhança (36,1%), a infraestrutura pública (35,6%) e as características da edificação (21,6%). Enquanto no Brasil foi identificado que os fatores subjetivos têm maior importância para a satisfação geral do morador, sendo a satisfação com a unidade habitacional e com a localização os fatores que mais interferiram na variável geral de satisfação (BRASIL, 2014).
Inserção urbana e entorno
Segundo Monteiro et al. (2015), nas análises de percepção de valor do empreendimento, realizadas em empreendimentos no Rio Grande do Sul, a qualidade da infraestrutura e dos serviços urbanos, diretamente vinculada à condição de saúde e a sensação de igualdade de direitos, aparece como um dos principais fatores de benefícios associados a percepção de valor, reconhecidos pelos moradores. No entanto, o levantamento realizado pelo IPEA (BRASIL, 2014) mostra baixa satisfação com a disponibilidade de equipamentos de saúde (postos de saúde, hospitais, clínicas e prontos socorros) próximos aos empreendimentos. Outro ponto de insatisfação está relacionado ao transporte público. Apesar de que em algumas regiões do país os moradores perceberem a facilidade no acesso ao transporte público, com pontos de ônibus e estações de trem e metrô, a demora é um fator negativo, com nota média de 3,9 dada pelos moradores. A demora identificada pelos moradores é reflexo das distâncias dos empreendimentos da faixa 1 do PMCMV aos centros das cidades, dificultando o acesso ao trabalho e à escola.
Segundo o estudo do IPEA (2014), os moradores estão satisfeitos com a vizinhança e relação com a comunidade, mas insatisfeitos com a segurança e disponibilidade de espaços de lazer próximos à região. De acordo com pesquisas que analisaram a percepção de valor dos moradores identificou-se que a segurança é o principal fator relacionado às percepções sócio espaciais (GRANJA et al., 2009; KOWALTOWSKI; GRANJA, 2011). Segundo Bortoli e Villa (2020) apesar de apenas 5% dos entrevistados declararem a melhoria da segurança como um dos motivos para a realização de reforma, 87,5% deles construíram muros em suas casas, salientando a importância da segurança. Apesar da sensação de insegurança e insatisfação com os espaços de lazer (BRASIL, 2014), os moradores relataram estar satisfeitos com o entorno de sua moradia. Segundo os autores, essa satisfação com o entorno se deve à priorização de valores, dada a percepção de que a família se mudou de uma área de risco para um bairro urbanizado. Para Monteiro et al. (2015), a satisfação com o entorno urbano é um dos fatores associados com a permanência das famílias no empreendimento.
Unidade habitacional (UH)
Em relação às unidades habitacionais, as pesquisas analisaram a satisfação e percepção de valor relacionadas com o tamanho, distribuição dos cômodos, qualidade construtiva e conforto.
De acordo com pesquisa de Granja et al. (2009), os moradores não percebem valor no conforto térmico e visual. No entanto, conforto acústico é o quarto item com maior valor percebido (8,4%), atrás de segurança, natureza e custo de vida. Uma possível causa pode estar relacionada com o fato que estes dois fatores (conforto térmico e visual) possuem outros artifícios que ajudam na adaptação do usuário, como iluminação de fonte elétrica e uso de ventiladores, por exemplo. O conforto ambiental foi listado como um dos itens de maior insatisfação no estudo de Monteiro et al. (2015), assim como a pesquisa do IPEA (nota 5,34). Esta pesquisa, no entanto, identificou a iluminação das habitações como um item satisfatório (nota 8,91). Neste estudo (BRASIL, 2014) não foi levantada a percepção em relação ao conforto acústico. Quando analisada a satisfação geral dos moradores, o estudo do IPEA mostrou uma relação entre as notas dadas para o conforto térmico com a região do Brasil, onde as notas mais altas estavam para regiões com temperatura mais amenas e notas mais baixas nas regiões mais quentes e nas regiões mais frias. Isso mostra uma ligação com a qualidade das construções, dada a baixa proteção para as temperaturas mais extremas. A qualidade construtiva das UHs foi avaliada negativamente pelos moradores no Rio Grande do Sul (MONTEIRO et al., 2015).
O tamanho, distribuição e número de cômodos da UH são vistos como um grupo de características importantes para o usuário no que tange a qualidade espacial (GRANJA et al., 2009). Em relação à avaliação destes itens, de forma geral os moradores relataram estar satisfeitos com a distribuição dos ambientes na UH, nota 7,88, e insatisfeitos com o tamanho, nota 4,66 (BRASIL, 2014). Nas HIS unifamiliares que passaram por reformas, o tamanho da residência é o principal motivo, 55%, que levou os moradores a realizarem reformas em suas casas, seguido pelo desconforto térmico, 45%, (BORTOLI; VILLA, 2020).
Satisfação geral e percepção de valor
Segundo o IPEA, de forma geral, os moradores estão satisfeitos com as moradias. No entanto, isso não significa que não existem pontos críticos a serem melhorados. Segundo os autores, a mudança para a HIS do programa traz uma melhoria na condição de vida dessas famílias, mesmo considerando a baixa avaliação dada para a UH, transporte, entorno e aumento no custo de vida (BRASIL, 2014). O estudo também levantou quais características têm maior influência na satisfação geral dos moradores:
Características pessoais do entrevistado:
tempo de residência na casa (ou no apartamento) - quanto maior o tempo de moradia no empreendimento mais críticos são os moradores;
condição na família - filhos, genros ou noras e sogros tendem a ter avaliações mais positivas.
Tipo da moradia – os moradores de casas são mais satisfeitos com a moradia do que demais tipos de UH.
Aspectos subjetivos:
satisfação com a unidade habitacional e com a localização;
custo do aluguel/prestação - quanto maior a redução do custo, maior a satisfação das famílias.
A percepção de valor dos moradores em relação às características dos empreendimentos representa quais os fatores mais importantes para estes moradores. Granja et al. (2009), com base no modelo de Winch, analisaram os fatores de quatro grupos: perspectiva financeira, perspectiva sociocultural, qualidade espacial e qualidade do ambiente interno. A Figura 16 mostra o índice geral de importância (IGI) de 26 fatores, onde percebe-se que a segurança é fator de maior importância, com IGI 16,5%, e um segundo grupo com índices que se sobrepõem, na faixa de 0,3% a 10,5%. Neste segundo grupo, no entanto, destaca-se a importância de presença de natureza, a preocupação com o custo de vida e o problema da acústica nestes empreendimentos.
Monteiro et al. (2015) analisou o valor percebido, pelos moradores, e desejado, pretendido pelos técnicos da prefeitura municipal de Porto Alegre. A partir da análise das entrevistas, os autores construíram um mapa de hierarquia cruzando a percepção dos dois grupos, Figura 17. No mapa fica evidente que a unidade habitacional tem o menor valor percebido pelos moradores, e também era um dos fatores com menor valor percebido pelos técnicos. O sentimento de posse, que aparece apenas na análise do valor percebido, é visto como um importante benefício pelos usuários da unidade habitacional. O mapa também mostra as relações entre a qualidade da infraestrutura e dos serviços urbanos vinculadas à sensação de igualdade de direitos e acesso à cidade formal.
Custo de vida
As análises do custo de vida em HIS consideram o custo com transporte, aluguel ou prestação, e as despesas com água, luz e condomínio. Segundo Balbim, Krause e Neto (2015) as famílias comprometem cerca de 37% da sua renda com as despesas de habitação, sem considerar o custo com transporte.
Os moradores relatam baixa satisfação com o custo de vida, principalmente pelo aumento relativo nas despesas com transporte, após se mudarem para os empreendimentos do PMCMV e nas despesas com água, luz e condomínio (BRASIL, 2014). Os autores estimam que as despesas com condomínio, na época da pesquisa, correspondiam a 5,5% da renda familiar mensal, sendo este gasto superior à despesa com o parcelamento da moradia, de 5,0% da renda familiar, para a maioria dos beneficiários. Com relação às despesas com aluguel ou prestação da casa própria, os moradores estavam, em média, satisfeitos com a redução do custo (BRASIL, 2014).
Em relação à energia elétrica, dois assuntos são abordados: a qualidade da energia e distribuição, e o custo da energia. Valamiel et al. (2022) trazem que a (in)eficiência energética é dada pela capacidade das famílias em acessar a energia, pela qualidade da energia elétrica disponível, pela segurança na distribuição e pelo impacto no custo de vida. Segundo dados da Pesquisa de Orçamentos Familiares de 2017/2018, os gastos com energia têm maior impacto nas faixas de renda mais baixas, representando 4,6% para as famílias com renda de até dois salários mínimos e 3,9% na faixa que recebe de dois a três salários (BRASIL, 2021). Valamiel et al. (2022) também analisaram o impacto do custo da energia na vida das famílias de baixa renda e identificaram que em média a conta de luz das famílias é cerca de duas vezes maior do que a média da capacidade de pagamento declarada, e que 32% das famílias encontra-se em situação de pobreza energética. Entre estas famílias, quando perguntado o que fariam com o dinheiro se o valor da conta de luz fosse a metade, 69% afirmaram que comprariam comida como 1ª opção.
Permanência
Segundo relatório do Conselho de monitoramento e avaliação de políticas públicas (BRASIL, 2020) parte dos moradores do PMCMV não permanecem residindo no imóvel do programa, 17,5%. De acordo com o relatório, as possíveis razões para deixar o imóvel estão associadas à falta de oportunidades de emprego, saúde e educação, dada a localização dos empreendimentos. Nas cidades de maior porte, a acessibilidade das pessoas que moram em conjuntos do PMCMV tende a ser pior quando comparada àquela das pessoas que residem em aglomerados subnormais (favelas).
No estudo de Monteiro et al. (2015), os autores levantaram que 11% dos moradores não faziam parte do cadastro original do programa, destes, 3% adquiriram o imóvel por meio de compra e 8% por meio de troca. Os autores também investigaram a intenção de permanecer no imóvel. A maioria dos moradores relataram ter a intenção de permanecer no imóvel (59%), sendo os principais motivos para a permanência: qualidade do empreendimento (27%), entorno urbano (27%), e apenas 5% justificam pela qualidade da unidade habitacional. A unidade habitacional, no entanto, é o principal motivo para os moradores quererem se mudar (24%), seguido pelo empreendimento (11%) e apenas 3% justificaram pelo entorno urbano (MONTEIRO et al., 2015). Por esta análise, é possível perceber que a avaliação do projeto deve incluir não somente a qualidade da UH e do empreendimento, mas a permanência dos usuários, que está altamente vinculada ao entorno urbano e infraestrutura pública disponível.
Expectativa
Muitos dos problemas identificados pelos moradores nas novas residências também estavam presentes no local em que moravam previamente, no entanto, ao mudar para um novo contexto, de moradia formal, as expectativas e percepções dos moradores mudam. No novo cenário, o problema já conhecido, passa a ser maior (BRASIL, 2014), a nova moradia também traz um entendimento maior de cidadania e dos seus direitos, como o acesso à infraestrutura pública, por exemplo. Segundo o IPEA (BRASIL, 2014) “quando se mora em uma invasão, e na informalidade, não se têm direitos, pois não se é um cidadão”. Segundo o estudo, o histórico dos moradores influencia em como eles lidam com a falta de estrutura disponível. Por exemplo, os moradores do conjunto habitacional Recanto Cajueiro, previamente ligados a um movimento pró moradia, viam a necessidade de mobilização para garantir seus direitos, enquanto em outros conjuntos a atitude em busca de mudanças se dava de forma mais passiva.
Para os moradores com menores rendas, a mudança para uma residência do programa também representa um aumento nos custos de vida, e, nesses casos, podem implicar na necessidade de que as famílias diminuam custos em outros itens de consumo básico, provocando o aumento da pobreza induzido pela própria moradia (BRASIL, 2021). Entre os custos que podem aumentar pela mudança para uma HIS está a conta de energia, podendo colocar as famílias em situação de pobreza energética.
Entende-se que as residências construídas para programas de habitação têm padronizações no projeto que visam diminuir os custos ao mínimo (BALBIM; KRAUSE; NETO, 2015), de forma a garantir a construção de um número maior de habitações. E, em muitos casos, não incluem os custos sociais indiretos (KOWALTOWSKI; GRANJA, 2011). A política habitacional no Brasil tende a perpetuar antigos modelos que levam à baixa retenção dos moradores. As famílias residentes nas HIS necessitam mais do que a unidade habitacional: o conjunto precisa possuir uma infraestrutura pública que possibilite a qualidade de vida desses moradores e contribua para a diminuição de custos, além de propiciar o aumento de oportunidades de emprego ou renda.
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